2013-02-27

Internato


Até aos anos 1950-60, os internatos eram a única alternativa que as famílias de classe média das vilas e aldeias rurais tinham para proporcionar estudos aos filhos se os não queriam enviar para o seminário. Com efeito, ao contrário do ensino primário público, que já era servido por uma extensa rede de escolas públicas (Plano dos Centenários, do Estado Novo), o ensino liceal público estava limitado às capitais de distrito. Tudo o resto eram externatos e internatos particulares. Atualmente, com a expansão do ensino obrigatório e da rede de escolas públicas, quase todo os internatos desapareceram, restando apenas os religiosos, os militares (Colégio Militar e Pupilos do Exército) e pouco mais.

Internato é um relato muito interessante sobre a vida nos colégios internos portugueses de meados do século XX, contado por um rapaz de 11 anos, Ramiro Afonso (o "Pinguim") que acaba de ser admitido. Ramiro é abandonado num mundo estranho e todos os seus laços afetivos, com o pai e a tia Libânia, com os amigos da sua idade e com os marçanos que trabalham na loja do seu pai, são completamente cortados. Sozinho e por sua conta pela primeira vez, Ramiro desconhece os códigos de conduta e poder que vigoram entre os rapazes do internato e comete erros que o deixam cada vez mais angustiado e confuso. Carente, aceita a amizade desinteressada do seu colega Conceição, que o desperta para a leitura, e as carícias e beijos do colega mais velho Luís Taborda, que lhe dá a proteção e o afeto que lhe faltavam.

O livro está organizado em 3 partes (a chegada de Ramiro ao internato, o primeiro período escolar, até ao Natal, e o segundo período, até à Páscoa). A escrita é detalhada, num estilo realista mas sem ser cru, sobretudo interessada nos dilemas psicológicos e emocionais dos personagens, utilizando um vocabulário rico, mas não pretensioso. Alguns personagens são muito bem descritos, como o Diretor ("o Barbas"), imponentemente sentado à sua secretária, por detrás de uma enorme pilha de livros, a grande barba hirsuta envolta no fumo dos seus cigarros na contraluz da janela da parede por detrás.

A primeira parte está cheia de innuendos sexuais, como a "espanhola" que Leitinho passa a Ramiro na primeira noite, "para ele se confortar", o comportamento do Barbas, que tem o seu grupo de meninos favoritos, efeminados, que espreita os alunos a despirem-se e dá-lhes banho de agulheta nus, ou o padre Neves, que tem uma namorada que o vai catrapiscar à missa, ou o Taborda ("a Rainha Santa Isabel dos meninos pêssegos") que salva Ramiro de uma "barrela". No entanto, quase todas estas insinuações acabam por ficar a pairar, sem desfecho ou consequência.

A segunda parte revolve à volta do mistério dos respiradores do teto das casas de banho e dos dormitórios, onde Ramiro pensa ter entrevisto ver os olhos do Barbas a espreitá-lo. Ramiro e os colegas imaginam que o acesso a estes respiradores se faz pela arrecadação do papel higiénico, que terá uma ligação ao escritório do Barbas. Murrol consegue roubar a chave da arrecadação, que entrega a Ramiro, que a deixa cair no banho mesmo à frente do Barbas... o livro parece, nesta fase, estar a transformar-se num livro policial mas, afinal, estes mistérios acabam por não se resolver...

A terceira parte deixa o espírito policial para passar ao religioso. Com a aproximação da comunhão pascal e a necessidade de se confessar ao padre Neves, Ramiro passa por enormes angústias existenciais. Sente que tem que confessar todos os seus pecados. Mas como confessar ao padre Neves, por exemplo, que se sente atraído pela rapariga que todos dizem ser a namorada do padre? Quando finalmente se confessa e o padre, desatento, abrevia a confissão sem o ouvir detalhadamente, Ramiro julga não estar preparado para receber o corpo de Deus na hóstia. Novamente se depara com enormes dramas teológicos e, finalmente, acaba por deixar de acreditar em tudo, na igreja, nos padres, nos professores, nos colegas (até Taborda deixara de ser seu amigo) e, ansioso, foge do internato, sendo encontrado a dormir num banco perto da estação de comboios pelo "bom" padre Neves que o resgata e tenta confortar...

No final da leitura de Internato fica alguma sensação de vazio, uma vez que João Gaspar Simões cria situações e desequilíbrios, nomeadamente no campo afetivo e sexual, na primeira parte, no enredo, na segunda, e depois no campo religioso, na terceira, que não chega nunca a resolver, deixando no ar a ideia de que não quer (ou não pode?) tomar partido publicamente.

João Gaspar Simões (Figueira da Foz, 25 de Fevereiro de 1903 — Lisboa, 6 de Janeiro de 1987) foi um novelista, dramaturgo, biógrafo, historiador da literatura portuguesa, ensaísta, memorialista, crítico literário, editor e tradutor português. Mais informação na Wikipedia...

Mais informação sobre a obra no site Goodreads.
O livro encontra-se esgotado, sendo possível encontrá-lo em sites de leilões, em segunda mão.


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